Amabilis Insania

Ary Farias
  EBP/AMP

Sabemos, desde Freud, que o artista é alguém que se dedica a criar artefatos destinados a contornar as proibições impostas ao desejo pelo supereu. Opera a sublimação pela via da sedução e do belo, buscando a viabilidade da satisfação pulsional ali onde, paradoxalmente, não se encontra o alvo. Nesse sentido, toda arte, em última instância é uma manobra de astúcia do sujeito, onde busca livrar-se das proibições impostas pela cultura e os seus regimentos morais. Logo, nessa perspectiva, toda arte traz em seu bojo um ato de transgressão, pois que inaugura uma perspectiva para além das redomas do hábito e do conforto das soluções óbvias em que se dá a combustão da existência do homem comum, sem engenho. Em alguma medida, toda arte é um recurso de reparação simbólica das lesões imaginárias que repercutem no corpo de cada falasser. Ao modelar a matéria, a palavra, a imagem e o som, o homem acaba sendo o artesão de seus suportes. Se para a psicanálise a palavra funda o ato, na arte podemos admitir que a imagem funda o fato. Um fato desorbitado das domesticidades do cotidiano.

O fato

Era o ano de 1974, mais precisamente no dia 07 de agosto. Uma imagem percorreu o mundo. Era do equilibrista francês Philippe Petit fazendo a travessia das torres gêmeas do WTC em Nova York. Petit, durante 45 minutos perambulou num cabo de aço a 450m de altura, sem qualquer rede de proteção, arrebatando o mundo com tal proeza.

Afinal, aquilo era arte ou apenas um gesto de loucura suicida?

O artista ao produzir sua arte, por efeito e inconscientemente, propaga uma ruptura com os arranjos simbólicos momentâneos da realidade (toda produção artística é historicamente datada, seus efeitos é que são atemporais), portanto, é alguém que segue contra as ordens reinantes no mundo, suas normas, suas práticas e até mesmo seus paradigmas de racionalidade e pensamento.

Lacan, no seminário 11, afirma que o artista é fonte de “algo que pode passar ao real” e que o mesmo trabalha para produzir um ícone, supondo com “o fato de existirem coisas, que podem despertar o desejo de Deus”. Busca com isso, agradar a Deus, o que justificaria uma possível beatitude ou estado sacrificial. Ele com sua arte, nada contra a correnteza e a sonolência dos hábitos. É, por natureza, um elemento perturbador da ordem. Alguém não metrificado pelo bom senso e, nesse sentido, mais próximo de Antígona, aquela que conheceu a escolha absoluta, cujo ato se vê divorciado de qualquer compromisso com o bem. Antígona, assim como o artista verdadeiro, se orientam apenas pelo incoercível do desejo, que radicalizado, retroage e reflui em gozo.

Petit, o funâmbulo, ao não retroceder diante da epopeia de seu desejo, acolhe em si a contingência mortal e, desse modo, publica sem que o saiba, um axioma da psicanálise onde prevalece a verdade de que o corpo é o espaço natal do gozo. Ao afastar de modo radical o seu corpo da rotina física dos fazeres planos e terrestres e pendurá-lo num cabo, afronta a morte e reluz a vertigem da liberdade.

Eis aqui o valor da arte: permitir ao espectador ordinário uma sensação de alforria, ainda que traga um corpo acorrentado aos ditames do supereu e suas sigilosas siglas de proibição. O artista, portanto, reafirma o corpo próprio enquanto móbile que a fotografia cristalizou como um instante de magia e sagração de um desejo incoercível, preâmbulo de toda arte ou, caso não, os pródromos de uma loucura que se anuncia.

A arte, na modalidade de performance do corpo, a arte de rua, permite ao artista restituir ao coletivo (o espectador casual e instantâneo) sua perspectiva singular e com isso suspende o recalque de um gozo cativo e insabido. Assim, a arte é capaz de parir, sem evidencia de gestação, o assombro, daí o seu alcance inconsciente. Faz aparecer ao espectador involuntário (o transeunte), seu objeto a, seu mais de gozar. Um objeto (A coisa) que na verdade, dirá Lacan no seminário 7, “não foi perdido, no entanto é reachado, reencontrado. Que ele tenha sido perdido é a consequência disso – mas só depois. Sabe-se que ele foi perdido no reencontro.

A arte, quase sempre dispensa as funções de utensílio e significante para florescer em sua função estética, de afronta, esplendor e vertigem. Ao exultar fora do significante, se faz pura audácia.

Em suma, Philippe Petit ao cometer o desplante de colocar seu corpo num abismo calculado, impraticável ao falasser comum, costura um crime delicado acolhido no que podemos ancorar sob o significante conceitual de arte.

Philippe Petit, logo após seu feito marginal, foi preso e levado a um hospital psiquiátrico. Queriam saber afinal, que loucura soterrava a racionalidade daquele sujeito. Nada que coubesse numa nomenclatura CID, apenas a loucura necessária àqueles que, com seu estilo, ousaram e conseguiram deixar suas marcas no tempo, isto é, tatuar nas retinas do mundo uma imagem que, na sua própria reverberação, renasce a cada olhar…

Referências Bibliográficas

LACAN, J. O Seminário. Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. p. 150

LACAN, J. O Seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2. Ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 110.