Fevereiro 12, 2025
Ao abordar o amor no tempo das cóleras, admitimos a premissa de que a cólera é um afeto facilmente verificável no contexto atual. Nesse sentido, podemos tomar o amor como aquilo que resiste ao que predomina “no tempo”, no contemporâneo colérico. O amor cintila, então, como ponto de rebelião às rupturas com as práticas de urbanidade e de identificação que se espraiam no tecido social.
Ainda que seja um contraponto, não deixa de ser o amor um tumulto, uma presença difusa, uma palavra que estilhaça.
Lacan, ao abordar as paixões do ser, ao tentar ordená-las, elenca como dominância uma outra paixão que não aquela advinda da díade amor-ódio.
A força maior da paixão, para Lacan, tem a ver com o gozo, não diretamente, mas como recurso defensivo, evitativo. Nada querer saber sobre o gozo é a posição subjetiva natural, esperada, num primeiro momento, do sujeito. Essa cegueira calculada é justamente o que responde pela eficácia do gozo. Há que se ler bem de que eficácia se trata aqui. Certamente não aquela que prima pela harmonia ou ordenação, mas, ao contrário, uma eficácia nefasta, uma assertividade na desordem.
Forjado na incongruência elementar gozo/desejo, o falasser traz em si, como marca d’água subjetiva, um fundo irredutível de angústia ou dor de existir.
Este breve prefácio permite, então, elencar a ignorância como a paixão mor do falasser. Do gozo nada se quer saber, ainda que seja impossível isentar-se de seus efeitos no corpo, na vida e tudo que possa ser construído depois como discurso. O gozo é indelével.
Para sustentar essa recusa, é necessária uma força presente apenas na ordem passional. O poder de uma paixão e suas imagens de furor decorrem do reino das vísceras, do apagamento da palavra como recurso de intermediação e regulação dos atos.
Para além do gozo, como efeito de consentimento, adentra-se no âmbito do desejo. Terra prometida e morada do Outro, fonte da fala e reserva de linguagem.
No continente do símbolo, a palavra é o que cimenta e faz elo na realidade compartilhada na síntese das imagens. Imagem e símbolo se conjugam na instituição da fantasia do sujeito, sob o pano de fundo de um real incapturável. Ponto de fuga e também via de acesso à ficção nuclear do falasser, de onde orbitará sua existência e construir-se-á como discurso: os significantes prevalentes que pôde colher do Outro.
Lego nostálgico, o eu para sempre buscará desse Outro (que é plural) repercussões que lhe denotem algum prestígio e reconhecimento, o prelúdio das necessidades narcísicas do falasser.
O Outro que me corrobora, donde a gênese do amor.
Arranjo que tampona a impossibilidade de relação sexual, o amor, um recurso eminentemente linguageiro, erige-se como vicissitude essencial. Acessado a partir do afrouxamento do regime de gozo, o amor percorre as sendas da existência pelas asas do desejo.
O amor torna-se o exercício elementar no assombro que é estar vivo.
Lugar privilegiado na especulação sobre si, a experiência analítica também tem no amor um de seus fundamentos. Um amor anunciado pela condição sine qua non da própria experiência, ou seja, o amor transferencial. Amor não natural, de estufa, de enfermidade…, porém não menos verdadeiro. O que difere aqui é o destino deliberadamente dado a esse amor que, desviado da satisfação erótica, pode ser conjugado à construção de saber.
Um saber sem precedentes, nem utilidade social. Um saber insubordinado ao utilitarismo ou retransmissão como modelo pedagógico de existência e felicidade.
Antes, uma assunção à errância.
Um saber que perscruta a falta, o vazio e o silêncio. O silêncio, aqui, não como princípio do sublime, mas aquele lugar onde o vocábulo ainda não lançou luz, nos confins do gozo.
Colocado como força motriz da experiência analítica, o amor de transferência permite ao analisante, no percurso do que se conta, derivar para os outros amores, principalmente, aqueles que decorrem de um encontro sexual efetivo dos corpos, os amores erotizados.
Os corpos se encontram na solidão do gozo próprio, ainda que no encontro amoroso, o que se inscreva, seja laço e eloquência. Dessa solidão intransponível, Lacan costurou o axioma da não-relação-sexual, que não cessa de se escrever.
Frente ao impossível, a teimosia.
Há também os que nunca cessam de escrever: os poetas!
Escrevem sobre a insônia da existência, a angústia, o amor e, sobretudo, o feminino. Penas devotas do que não cessa de ferir.
No poema, essa trincheira de algodão, cada um delira, a seu modo, suas desditas. Temos aqui um certo João¹ que, desabrigado da paz, habita a tormenta de um amor irrealizado por uma prima.
Expatriado de si, na voragem, o poeta se defende com a construção de um dos poemas mais brilhantes já talhados em língua portuguesa: UMA FACA SÓ LÂMINA².
No próprio título do poema já se imiscui a notícia do amor como objeto vocabular que fere, que sangra, pois é, irremediavelmente, cortante.
João Cabral de Melo Neto se vale de três objetos invasivos para aludir ao infausto existencial de um amor irrealizado, não acontecido no corpo.
A lâmina, o relógio e a bala são as consistências exógenas invasivas que perturbam (perfuram) a carne do corpo hospedeiro desse amaro amor.
Invadido por objetos (ideias fixas) torturantes, esse corpo deambula errante entre as dores.
Um corpo que, ao menor movimento, sente a “impiedade da lâmina”³ roçar-lhe os ossos. Aqui, a faca ferina se aloja na “bainha do corpo”⁴, relegando-lhe à insônia, como se pulsasse submerso nesse mesmo corpo um relógio nervoso. Sem promessa de fim, a tortura desse amor escorre na esteira cruel da eternidade “sem fadiga, sem ócios”⁵.
Fora de seu bom juízo, esse corpo afoga-se em seus próprios fluidos, sofre a desproporção de seu próprio peso, claudica “à febre desse sol”⁶. Carrega em um dos lados, alojado em seus interstícios, uma bala, que disparada à queima-roupa delira uma proximidade que nunca houve. Essa “bala indigesta”⁷ fere qualquer possibilidade de armistício dessa contenda íntima e visceral que acontece no campo do Um.
Fatigado da “ausência que leva”⁸, esse corpo amoroso flerta com o abandono de si, adotando o paradigma da anorexia para cultuar seu gozo, visto que esse amor flora suas pétalas negras e se desenvolve na angústia “não do que come, porém do que jejua”⁹.
Por fim, se para a mulher temos a devastação e a obnubilação do eu como modalidades de respostas possíveis diante do desencontro amoroso; no homem, esse desgoverno tem, por efeito, dias íngremes de sal e de dor.
O amor, sutilmente, desidrata o viril.
¹João Cabral de Melo Neto (1920-1999), poeta e diplomata brasileiro, nascido em Recife-PE, cuja obra vai de uma tendência surrealista até a poesia popular, caracteriza-se também pelo rigor estético e pela recusa declarada à escrita confessional.
²MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa e prosa. Antonio Carlos Secchin (Org.) – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
³MELO NETO, op. cit., p. 181.
⁴MELO NETO, op. cit., p. 184.
⁵MELO NETO, op. cit., p. 182.
⁶MELO NETO, op. cit., p. 186.
⁷MELO NETO, op. cit., p. 185.
⁸MELO NETO, op. cit., p. 182.
⁹MELO NETO, op. cit., p. 183.