Março 14, 2025
pai,
da areia de suas incongruências
e suas ideias sem pauta
naquele instante de espanto solitário, no fulgor do desamparo
desde então, na senda da tradição que lhe forjou
cumpre seu pecado irrevogável de homem e liquefaz-se
reescreve nas páginas de uma mulher, em letra nativa, contos vivos de filiação
prorroga seus genes bucólicos,
seus desatinos, suas fraturas mundanas
e reprojeta seus sonhos
e também seus medos que nunca me foram ditos
refaz, na contumácia da lenda consanguínea
seus arames farpados, seu decálogo de nãos
tece também suas cortinas para a cultura do pudor,
seus arabescos morais
dessa pedagogia genealógica,
me trouxe as cartilhas amareladas da tradição, do círio com o qual se proveu
sua lanterna de luz baça, de claridades provisórias
houve também os dias espraiados, de cores desmaiadas na fé da alegria
dias de sol
esse ordenador antigo com o qual queimou sua tez
e que antes também já queimara seu pai, seu avô
e todo o seu ontem ancestral
e então, da altivez desse lugar de quem comete um filho
pedia-me: ‘mira aqui, acerte seus passos!’
eu, por amor, ouvia mais seu compromisso
sua tarefa paterna
do que o vento livre do seu desejo
já tão amainado pelas desordens da existência
você soube, de algum modo, transmitir-me
que um homem, na artesania da sua virilidade
deve fundar sua presença discreta
na orla da desmesura do feminino
escreveu em mim, tacitamente, o pequeno mandamento
que alude a virilidade enquanto função castiçal ao feminino
essa lei elegante que funda um homem
tudo isso transcorreu nas águas sempre correntes do tempo
uma existência derramada na intermitência das estações
onde tudo flui, degenera e renasce
hoje, te sinto sem as fardas totêmicas
tão rés, tão profano
por isso, tão real
tão conjugável
filiar-se, de algum modo, é consentir uma sutil amputação
uma subtração civilizatória
um amor subcutâneo
hoje, o futuro consumado
no acúmulo da sua ausência
nesse vazio que grafa minha orfandade
pueril, ensaio insolências prescritas
trago meus cabelos quase longos
com isso,
sei
desalinho sua projeção de me ver comedido,
devidamente ancorado às métricas do Outro
me faço infiel aos seus cálculos
e no fracasso da transposição entre seus princípios e minha estética
busco, sem intenção proclamada
porém, com insinuante verdade
te incomodar
cavucar antigas dissonâncias amorosas
e, com isso, fazer a arqueologia da sua voz
seus comandos de concordância, subordinação e ordem
cujas palavras brandas esculpiam, discretamente, o medo na carne
a sintaxe paterna com a qual buscava escrever suas leis em meus dias
e imprimir as palavras justas da tua Teologia
11/2020