Torto Arado

Ary Farias
  EBP/AMP

Arte - Ton Barbosa

A literatura oferece ao homem a possibilidade de recontar a história afastado do fato. No entanto, imerso na linguagem, aquilo que do fato em si se desdobrou em ato, não raro, encontra o limite da expressão, beira o inenarrável. 

Se partirmos da premissa que o humano é antes de tudo um fato de linguagem, o homem está sempre destinado a navegar nas águas da fala e, desse modo, escrever seu destino, sempre em curso. 

Itamar Vieira Junior, um jovem escritor brasileiro, nordestino, com a pele matizada do semiárido, produziu um livro que retrata de modo pungente e ao mesmo tempo lírico e cristalino uma faceta desse ambiente e seu povo. Descreve em seu livro Torto Arado a geografia absurda da condição de minoria do povo preto num país eminentemente afrodescendente. 

Retrata o cotidiano de um Brasil recôndito e ao mesmo tempo tão próximo a ponto de ser íntimo, velado e soturno. Uma condição que se erige nas areias da perplexidade, às vezes tão inverossímil como só a realidade consegue ser. Uma realidade tão nefasta que bem poderia estar seguramente amputada pelo esquecimento, nos desvãos do passado, no entanto, réstias desse sol negro ainda vazam nas frestas da cortina do contemporâneo. 

Nesse Brasil profundo, nuclear, afastado das imagens litorâneas ensolaradas e felizes, ainda perduram resíduos do colonialismo e escravatura, máculas irretratáveis da nossa da nossa história como país, cujos efeitos ainda ressoam na nossa organização social, política e cultural. 

Um Brasil onde ainda viceja perspectivas coloniais de pilhagem, captura, usura e conflitos pela posse da terra, cujas repercussões se espraiam num leque que condensa todo tipo de violência operadas nas rotinas de espoliação e tentativa de apagamento subjetivo da população sertaneja, irremediavelmente pobre e quase sempre preta, parda ou indígena. 

Uma crônica de dominação e violência, cujos paradigmas e mecanismos buscam, sutil e deliberadamente, o desligamento ou ruptura do trabalhador rural com os elementos socio-religioso-cultural fundantes da sua subjetividade e pedra angular no seu exercício identitário, de expressão, de cidadania e liberdade. 

Efeito disso, verifica-se o funcionamento de aparatos de desmonte cultural e subjetivo que deixam o sujeito à deriva, incapacitado de ler e interpretar a sua realidade, reproduzindo, por efeito, a métrica e os valores dos seus algozes, sutilmente edulcorados de pedagogia humanitária. 

Por fim, Torto Arado, é uma obra que relembra uma realidade (ainda atual) de pobreza e indigência de cidadania de uma população que ainda não alcançou o platô elementar do humanismo e da democracia: a igualdade de condições.

Reflete um tempo cuja estação ainda faz nascer dias de uma realidade inclemente. 

Enquanto houver mecanismos que releguem ao homem uma subjetividade apátrida, não podemos confirmar a efetivação da nossa característica mais cara: a capacidade de interlocução, pertencimento e amor fraterno como recursos indispensáveis para a dissolução dos abismos entre os homens. 

Torto Arado, revalida, tristemente a expressão do filósofo inglês Thomas Hobbes: O homem é o lobo do homem.

20/11/21

Bonito – MS

Encontro para discussão da obra

Olaria – Grupo de leitura e discussão de textos filosóficos, literários e psicanalíticos